NUNCA DESÂNIMO...
-
Estamos aqui reunidos para tratar de um assunto de extrema importância e
máxima urgência! Um verdadeiro escolho aos nossos legítimos interesses.
– Havia apenas mais três integrantes nessa reunião. Por isso, a
altiloquência da mediadora era um tanto desnecessária.
- Eu detesto quando ela começa com essa “ladainha ufanista”. – Comentava Marte com o parceiro da direita e a baixa voz.
- Ora, ora... Desde o último embate entre vocês, lá em Tróia, que você
detesta tudo o que diga respeito a Minerva. – Respondia Ares, o seu
equipotente grego, no mesmo tom e com picardia, relembrando ao deus da
guerra sangrenta a derrota dos seus protegidos, face à epopeica vitória
dos exércitos resguardados pela deusa da guerra justa.
- Quietos! A hora é de somarmos forças e não de nos dividirmos. –
Cariocecus, o deus lusitano da guerra, interveio e pôs fim à quase
celeuma. Minerva continuou:
- A humanidade cada vez mais se une em torno do pacifismo... E isso
tem que ser revertido. Onde, o nosso proveito? Onde, o nosso prazer? – E
a camarilha concordava em uníssono.
- É notório que os movimentos a favor da paz estão se organizando dia
a dia e por toda a Terra. E, o que é pior, ampliam os seus tentáculos
por meio das mais variadas formas, indo de discursos empolgantes,
passando pelas passeatas e chegando à solta de balões brancos. –
Prosseguia Minerva, em seu introito.
-
Ora, não sei por que tanto alarido – desdenhava a divindade lusitânica.
Quero recordá-la de que nunca abandonamos os nossos postos. Aliás,
lembra de Heráclito? Pois não foi você, Ares, que bem soube deturpar a
Luta dos Contrários, levando os contemporâneos do filósofo e os que se
lhes seguiram a justificarem a guerra, pois dela resultariam a harmonia e
a justiça?
- E olha que nem precisei de sacrifícios humanos para me estimular. – E
os três riram a breve tempo, lembrando os prisioneiros que, volta e
meia, eram ofertados a Cariocecus.
-
Não questiono, aqui, os nossos feitos pretéritos – intervinha Minerva
–, mas coloco à prova o nosso futuro, a nossa sobrevivência! – De
repente, o silêncio se sobrepôs aos gracejos... e a circunspecção tomava
conta das mentes beligerantes. Passados alguns segundos, Marte
questionou:
- E o que mais poderíamos fazer para atacar essa onda pacifista? O que sugere?
- “Uma grande parte dos males que atormentam o mundo deriva das
palavras”, disse Burke certa vez. Ora, lembrando que, na atualidade,
praticamente não há mais fronteiras para a literatura, já pensaram no
malefício que faríamos se conseguíssemos minar os espíritos de quantos
tentam usar a palavra escrita em prol da paz? Ataquemos os escritores, e
o estrago se multiplicará.
- E por acaso essa ideia é original? Também quero lembrá-la, oh
querida irmã, de que jamais negligenciamos essa área do pensamento
humano; tanto que bem soubemos inspirar muitos autores. Aliás, já que
hoje estamos para as citações, recordo o americano Oliver Wendell
Holmes: “A guerra é a cirurgia do crime. Por má que ela seja, significa
sempre a extirpação de qualquer coisa pior.” – Marte não perdia nenhuma
oportunidade de alfinetar a rival.
-
E eu, o brasileiro Tobias Barreto: “Cada guerreiro que por nós combate é
a ira de Deus que se faz homem.” – complementou Ares, aderindo à
zombaria.
-
Sempre a impulsividade sobrepondo-se à racionalidade... Não quis fazer
alusão a esse ou àquele escritor, propriamente dito. Referia-me ao
Concurso Mundial de Cuento y Poesía Pacifista, e que, pelo que fui
informada, ganha adesões a cada minuto.
- Esclareça melhor o seu plano, Minerva. O que você pretende realmente? – Carioceus falava por todos.
- Eu explico: é notório que as palavras, sobretudo as escritas, sempre
foram mais fortes do que as espadas ou canhões. Chegam a milhões e se
perpetuam na história. Ora, indaguei a mim mesma, como contra-atacar os
nossos inimigos e conseguir com que sejam derrotados?
- Como?! – Perguntaram, a uma só voz, os três armipotentes.
- O segredo está em convencer-lhes os espíritos de que são incapazes
de mudar o ser humano. De que seus esforços, suas palavras serão sempre
inúteis; uma luta em vão, uma tola utopia. – Um leve sorriso, misto de
maquiavelismo e prazer, formava-se espontâneo nas fácies bestiais.
- Agora entendo aonde quer chegar, Minerva. Tratemos de convencer os
participantes de que são impotentes diante da beligerância inata dos
mortais e esse concurso será o maior fiasco de todos os tempos! – Era a
primeira vez que Marte concordava com a parenta.
- É claro!... Com isso, toda a Terra reconhecerá que, se até seus
poetas e prosadores deixaram-se levar pelo desânimo, do que valeria ao
povo que os toma como exemplos perseverar no ideal pacifista? – Ares
somava-se em entusiasmo.
-
Brilhante, oh deusa da guerra diplomática! É como eu sempre digo: as
boas ideias se revelam simples e eficazes. Sendo assim, proponho um
brinde – e a potestade lusitana levantava a taça –: ao malogro desse
concurso!
- Ao malogro! – E beberam, e riram, e celebraram por toda a noite.
Era preciso agir rápido. Cada divindade ficou encarregada de atuar em
uma parte do globo. Marte, por exemplo, não abriu mão das Américas;
Cariocecus, de toda a Europa... Minerva e Ares não se opuseram e
dividiram o restante de comum acordo.
No dia seguinte ao refestelo, e mesmo sob a viva lembrança de Baco que
bem lhes pesava ao raciocínio, os potentados partiram com seus
exércitos rumo às casas dos concursandos. E o cerco teve início,
implacável, impiedoso...
- Ah, como é nobre a sua intenção. E quão bela a sua veia artística! –
Comentava Ares, consigo, junto a uma promissora poetisa. – Pena que
tudo farei para tolher-lhe o ânimo. Que tal...? as últimas investidas da
Coréia do Norte? Lançam uns mísseis aqui, outros ali... e a boa e velha
Guerra Fria está mais viva do que nunca.
- Vejo que seu conto está prestes a acabar, pretenso aprendiz de
best-seller. – Sussurrou Marte, em tom desdenhoso, a um romancista
consagrado. – Quem sabe eu possa desencorajá-lo, enfatizando que o homem
continuará a não dar ouvidos à história, pois os campos de
concentração, que pensavam estar para sempre enterrados, ainda ardem nos
corações bósnios, face ao extermínio perpetrado em Srebrenica?
- Nada como reinar aquém da Taprobana... – Cariocecus deleitava-se ao
regressar a Lisboa. Nunca se desapegara do seu antigo Condado
Portucalense... – Percebo vigor e idealismo neste jovem ensaísta. Seu
currículo só tende a florescer. Bem... que tal se eu o lembrar do
comércio escravagista que os nossos patrícios desenvolveram? Ou então...
Dos arbítrios que seu avô salazarista cometeu? Certamente essa breve
retrospectiva o envergonhará e o desalentará, pois o levará a crer que
os mortais continuarão a se chafurdar no erro, século após século, mesmo
que admitam a história como uma espiral ascensional.
- Que otimismo na terceira idade! Não pensei que chegando aos oitenta e
dois anos ainda houvesse esperança dentro desse coração velho e
cansado. Quer dizer que a literatura infantil é o seu passatempo?
Curiosa coincidência... pois o meu é, justamente, desvirtuar a
juventude! – Nunca viram Minerva tão pérfida! – Vejamos... Idade
provecta, vida sofrida... Pois eu pergunto, senhora, se tem tão pouco
tempo de vida; se viu guerras e até viveu comoções intestinas... será
que ainda há tempo para ensinar algo de bom aos pequeninos, pois, mais
cedo ou mais tarde, engrossarão as fileiras de soldados, revolucionários
ou terroristas?
E os meses foram passando... A cada dia, os comandantes divinais eram
informados por seus generais sobre as investidas aos participantes do
concurso. Romancistas, poetas, contistas, sonetistas, ensaístas,
novelistas... todos os que, com sua arte, procuravam contribuir para a
prosa ou para poesia pacifistas eram acossados das mais variadas formas;
nunca olvidando dos objetivos e dos meios traçados por Minerva. E toda
vez que o quarteto divino se reunia para avaliar a ofensiva, era difícil
saber qual deles cantava maior vantagem sobre o outro. Os semblantes,
no entanto, camuflavam a realidade dos fatos, escamoteando-os nos
torreões do orgulho...
E
o concurso continuava... e por mais que os deuses guerreiros afirmassem
que os resultados que obtinham eram satisfatórios, ou que os relatórios
apresentados por seus comandados fossem, como diziam, positivos, o
número dos participantes não diminuía; pelo contrário, mais e mais
escritores se inscreviam!
-
Eu não consigo entender o que aconteceu! – bradou Marte num arroubo de
cólera, pois que encantoado pela angústia. Mas antes que algum dos
demais ousasse uma justificativa, um general se aproximou e disse:
-
Oh altipotentes, um nosso espião conseguiu uma cópia de um dos poemas
finalistas. Tentará nos enviar o outro, bem como o conto selecionado,
assim que a oportunidade lhe for favorável. – E o entregou à mentora
belicosa.
Minerva
estava trêmula e envergonhada; muito distante da genialidade que um dia
inspirara Odisseu a imaginar um grande cavalo de madeira... Ares,
então, tomou-lhe o papel e, em voz alta e pausada, começou a ler um
soneto.
E
a cada verso, em que se entrosavam perfeitamente decassílabos e
alexandrinos, mais um quê de originalidade, revelava aos demais que o
esforço que tanto despenderam, esse, sim, tinha sido em vão:
Um só caminho.
Em meu reino, de onde posso tudo ver,
conta bendita a que me doei,
só vejo a luz que de mim criei,
nunca desânimo, em que não quero crer.
E se muitos há que te levam a arder,
pecadores por quem sempre roguei,
avatares alhures enviei.
Segue-lhes os passos! Isso, sim, é viver.
Mas o homem insiste em se desviar...
e não se detém. Conquista; mata; erra.
Enloda-se no poder que o faz cegar.
Destarte, retorna ao pó pela guerra...
Mas, não duvides, nasceste para amar.
Faze, pois, o que te cabe! Paz na Terra!
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