Pedro Carrano, no Brasil de Fato, sugestão do assalariado (http://www.brasildefato.com.br/node/11219)
“A luta essencial é entre mercado e direitos. A gente quer tirar do
mercado e colocar na esfera dos direitos e eles querem mercantilizar. A
linha demarcatória é entre neoliberalismo e antineoliberalismo”, define o
sociólogo Emir Sader, quando questionado sobre o que é ser de esquerda
nos dias de hoje.
Sader esteve em Curitiba para o lançamento de seu livro As Armas da
Crítica – Antologia do Pensamento de Esquerda (Editora Boitempo, ao lado
de Ivana Jinkings). Em coletiva cedida à imprensa sindical e de
esquerda, organizada pelo sindicato de professores estaduais
(APP-Sindicato), o que era para ser uma conversa pontual sobre um
lançamento tornou-se uma reflexão sobre a crise econômica e a disputa em
torno da manutenção do modelo neoliberal, por um lado, e as tentativas
populares de romper essa hegemonia; o que passa, de acordo com Sader,
pela questão de os movimentos sociais retornarem à disputa na esfera
política.
Brasil de Fato – Qual caracterização o senhor faz do atual momento da crise mundial?
Emir Sader – É inerente ao capitalismo a crise. Como
Marx reconheceu no próprio Manifesto Comunista, o capitalismo tem uma
extraordinária capacidade de transformação da realidade, mas não
distribui renda para consumir o que produz. Então, periodicamente o
Capital tem crises, que alguns chamam de superprodução e outros
subconsumo. A produção cresce e falta consumo, então o paradoxo é que
sobram mercadorias nas estantes. Ao invés de distribuir renda para
consumir, a crise manda embora trabalhadores e aumenta-se mais ainda a
crise. Só que o capitalismo achava que o mercado recompõe isso. Na
crise, as empresas que eles consideram fragilizadas, digamos, quebram e o
capitalismo retoma seu ciclo de crescimento, num patamar mais baixo,
mas mais saudável. Desta vez, não está acontecendo isso. Porque na fase
neoliberal do capitalismo, o que é hegemônico é a especulação e não a
produção.
Como se dá este embate no campo da política? A impressão é
que, na opinião pública, se polariza entre alternativas neoliberais e o
resgate do keynesianismo.
O grande diagnóstico dos dirigentes capitalistas quando terminou o
ciclo expansivo econômico anterior foi o de que a economia deixou de
crescer porque havia muita regulamentação e ‘muito Estado’. Então, é
preciso liberar a livre circulação do Capital, tirar as travas para que
circule. A grande norma passa a ser a desregulamentação, o
livre-comércio. Ao fazer isso, não vem um ciclo produtivo e expansivo.
Porque o Capital não é feito para produzir, mas para acumular, se ele
consegue isso na acumulação é para lá que ele vai. Então, em escala
mundial, há uma brutal transferência de capitais do setor produtivo para
o especulativo. Hoje, mais de 90% das trocas econômicas no mundo não
são compra e venda de bens, são basicamente compra e venda de papéis.
Ele [sistema capitalista] está numa fase particular, diferenciada. O
neoliberalismo não teve um ciclo produtivo porque na verdade canalizou
recursos para a especulação. A crise explode diretamente no sistema
financeiro, bancário. E a hegemonia de ideias é neoliberal. Estão dando
soluções neoliberais para a crise na Europa, estão jogando álcool no
fogo. Tanto que a Dilma jogou isso na cara da Angela Merkel: cortando
[direitos trabalhistas, previdenciários] só se leva a mais recessão e
desemprego. Essa é a interpretação dominante.
A outra [solução] é a da reativação keneysiana, um pouco o que a
América do Sul está fazendo. Algo óbvio. Na crise se investe mais em
políticas sociais, distribui a renda para aumentar a demanda. Como
fizemos em 2008. O que tem uma solução, do ponto de vista imediato,
anticíclica, funciona relativamente. Tanto que a América do Sul é um
polo de desenvolvimento ainda. Falta-nos a demanda deles, mas em outra
circunstâncias a crise seria avassaladora. Já existe uma multipolaridade
econômica mundial, pela integração regional, pela relação com a China, e
também pelo mercado interno de consumo. A visão crítica disso é que é
uma solução defensiva em relação à crise.
Se você não muda estruturas econômicas de poder, isso tem limites.
Nosso continente foi vítima das transformações mundiais negativas, como a
crise da dívida, ditaduras militares, governos neoliberais, e que
desarticularam a estrutura industrial, abriram aceleradamente a
economia, enfraqueceram o Estado. Então temos coisas paradoxais: os
produtos primários agrícolas e energéticos são prioridade na exportação
do comércio exterior, então exportamos soja e fazemos política social.
Melhor assim, mas de qualquer maneira é uma soja ligada ao agronegócio.
Então, temos limitações estruturais, porque a estrutura mundial ainda é
hegemonizada pelo neoliberalismo. Só tem saída com a integração
regional.
Houve o crescimento de renda nos governos Lula e Dilma, mas
isso não parece interferir na consciência de classe. O senhor poderia
comentar esse processo?
Essa é a maior disputa no mundo hoje. Os EUA são decadentes como
potência militar, política e econômica, mas a maior força deles é a
força ideológica. O modo de vida estadunidense é a mercadoria mais forte
que eles têm, que penetra na China, penetra na periferia dos pobres,
são valores determinantes, que ninguém compete com eles. No Brasil, não
se está gerando uma nova forma de sociabilidade, correspondente à
democratização econômica e social. Isso não está sendo acompanhado de
valores. Hoje o risco não é tanto o consumismo, mas quem é que
influencia os processos mesmo eleitorais? É a mídia e são as igrejas
evangélicas. O movimento popular está muito fragilizado no seu processo
de mobilização e também de difusão de ideias. São Paulo foi pega
desprevenida neste sentido. Vivemos três ditaduras que são os obstáculos
maiores: a ditadura do dinheiro, que é o capital financeiro, ditadura
da terra, que é o agronegócio, e a ditadura da palavra, que é o
monopólio da mídia, o que dificulta essa criação de consciência nova.
E qual o papel dos sindicatos, cuja atuação parece muito restrita aos
seus interesses econômicos? Difícil porque, nas grandes transformações
do mundo, os trabalhadores foram vítimas especiais, não só na esfera
produtiva, nas políticas de flexibilização laboral, que enfraquece a
base dos sindicatos, mas o próprio mundo do trabalho ficou
invisibilizado – parece que ninguém mais trabalha. A jornada hoje não é
de oito, mas de doze horas. Esse é o cotidiano das pessoas, que não está
em lugar nenhum. Não tivemos muitas gerações de trabalhadores a ponto
de gerar uma cultura operária no país, nem sequer na base, tampouco na
literatura. São poucas coisas. No mundo rural sim. Então, nas novelas da
Globo, que criam o imaginário nacional, o trabalhador não existe.
Então, o que ocupa as pessoas o tempo todo, que é o trabalho alienado,
não aparece, não está em lugar nenhum. Não está em editoria de jornal.
Quais são os espaços para essa disputa ideológica?
Mesmo sem financiamento público de campanha, o movimento popular
deveria eleger sua bancada no Congresso. Sei que não é fácil. Olhamos o
Congresso, há retrocessos ou se bloqueia avanços. O agronegócio tem uma
bancada fenomenal, e apenas dois representantes de trabalhadores rurais.
Quantos representantes os educadores têm no Congresso? Se tem, nem
sequer atuam como bancada. Já de donos de escolas privadas está cheio.
Hoje, uma estratégia insurrecional não é viável. A correlação de
forças mundial mudou, basta ver a situação de impasse na Colômbia, a
América Central se reciclou. Se os zapatistas e o MST militarizassem sua
luta seriam massacrados. Então, [a luta] é pela democratização do
Estado. É preciso penetrar no Estado, não de qualquer modo. O parlamento
é um lugar não só para ter líderes políticos e sindicais. Reclamamos,
com razão, que o governo nem colocou a lei de regulamentação da mídia em
votação, mas você acha que neste Congresso, formado por donos de meios
de comunicação, isso vai passar?
Como o senhor define o campo da esquerda hoje?
O capitalismo assumiu a roupa neoliberal. Veio de um modelo
keynesiano, de bem-estar social, para um modelo liberal de mercado. Essa
é a linha divisória. Ser de esquerda hoje, moderadamente ou
radicalmente, é ser antineoliberal. A luta essencial é entre mercado e
direitos. A gente quer tirar do mercado e colocar na esfera do direito e
eles querem mercantilizar. A linha demarcatória é neoliberalismo e
antineoliberalismo. Há movimentos que são gritos desesperados que não
encontram espaço na esfera política. Agora, diferente é o movimento dos
estudantes no Chile, que tem organicidade com os sindicatos, fazem greve
geral e levaram à quebra de legitimidade do governo Piñera.
Seria possível estratégias combinadas entre movimentos, partidos e governos?
A América Latina teve governos neoliberais na sua versão mais
radical. Na década de 1990 tivemos um período de resistência contra essa
hegemonia que era tão forte. Os movimentos sociais foram determinantes
nessa época. Depois, surgiram governos alternativos. Era a hora de
passar da resistência à disputa de hegemonia. Na época, a hegemonia
dominante no Fórum Social Mundial era a das ONGs, tanto assim que se
teorizou e os movimentos sociais entraram nessa sobre a ‘autonomia dos
movimentos sociais’.
Autonomia em relação a quê? A gente falava antes de maneira ampla em
autonomia em relação à burguesia e etc… Agora, autonomia em relação à
política? A ONG sim, nasceu como sociedade civil conquistada. Os
movimentos sociais entrarem nessa foi uma loucura. O movimento piquetero
acabou na Argentina. Os zapatistas buscaram emancipar Chiapas,
independente da luta política no México, são contra até o PRD e as
soluções moderadas, em nome da ‘autonomia dos movimentos sociais’. Isso é
algo pré-gramsciano. É não disputar a hegemonia. Então, foi fundamental
os movimentos bolivianos se reunirem. Derrubaram cinco governos na
Bolívia, criaram um partido para disputar a presidência, dando um salto
de qualidade. Quem está, mal ou bem, construindo um outro mundo possível
são os governos latino-americanos. O FSM devia ser o lugar onde os
governos com os movimentos sociais sejam os pontos centrais dessa
alternativa.
FONTE: Blog Vi o Mundo e www.janeayresouto.com,br
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