Eu tinha cerca de três anos, quando
iniciei, por exigência de mamãe, aulas de alfabetização com Valdinha
(Valdecir Vilar de Queiroz Soares). Que doce e suave presença humana em
minha vida! Sua casa cheirava a flores. De longe sentíamos os aromas do
seu jardim -um verdadeiro éden- espargindo dos cravos, dálias, jasmins,
rosas, bogaris, jasmim-vapor, resedás, margaridas e outros espécimes
vegetais que me enchiam de encantamento.
Na casa branca havia um
terraço adornado com um conjunto de cadeiras de ferro e o balanço;
jarros com beijos de várias cores; a cisterna (provocando-me uma
sensação indizível) cortejada pela poética sombra de um caramanchão,
cuja trepadeira exibia em seus galhos, pequeninas e mimosas rosas.
Relembro as árvores do quintal: os pés de carambolas, laranjas da terra,
pitangas, maracujás (imiscuindo-se nesse reino e acasalando-se com a
exuberante trepadeira). Ouço, como se fosse hoje, a cantiga das cigarras
envaidecidas seduzindo aquele cenário!
Ao sair da aula, diariamente,
lá estavam as minhas companheiras dos meus dias de infância: Chiquinha e
Bibiliu (filhas de Inês, a ama-de-leite das crianças da nossa família).
Suadas e esbaforidas, com os cabelos arrepiados, logo anunciavam
(pareciam anjos com suas trombetas): “Luça, tu nim sabe qui vimo um sapo
seco e isturricado. Tava virado de papo pra riba, pertim da arvre da
isquina do berro (a esquina da minha casa, onde um carneirinho apartado
da cabra, berrava com dilacerante mágoa). O danado do sapo tá é dando
siná de coisa rim, vombora logo interrá o bicho nojento, mode num pegá
rindade im nós...”
Elas deveriam ter cinco e seis
anos (pareciam gêmeas). Eram alegres, criativas, sempre satisfeitas,
irradiando felicidade (de onde viria a felicidade dessas humildes
criaturas, que amanheciam e anoiteciam em nossa casa?).
Astuciosas (longe dos olhos de
mamãe e de Babá), certa vez apareceram com massa crua de pão e fomos
para o quintal da casa. Lá, elas fizeram bonecos e bichinhos, utilizando
caroços de frutas para fazerem os olhos. Estavam “com a mão na massa”
quando surgiu o dono da padaria (“c´as venta inguá os bueiros do ingenho
baforando fumaça”)- segundo Bililiu.
“São essas duas espevitadas,
senhor Abel e dona Áurea, mal tive tempo de impedir que me levassem boa
porção de massa, logo deram no pé. São umas pestes, não deviam deixá-las
com a filha de vocês...” (desabafou irritado). E papai, com a sua
peculiar bondade, lhe disse: “Ora meu caro, são apenas crianças, pagarei
os prejuízos...”
Infelismente mamãe proibiu -
me de brincar com as meninas durante uns dias, restringindo-me ao lazer
com a mana Iara e algumas primas. Depois, pedi - lhe, encarecidamente,
que mandasse buscar minhas amiguinhas. No dia seguinte, ao sair da aula,
as minhas tristezas foram recompensadas com a chegada barulhenta das
diletas companheiras, que, alheias às humilhações sofridas
anteriormente, traziam uma euforia contagiante: “Si Luça subesse, conto a
gente brincô! Cumemo bolo de fubá na casa de dona Rosinha, a moça véia
da Ingreja, que deu retaios mode nóis fazê vistidim pras bunecas. Fizemo
de chita, de fustam, de bolinha e preguemos inté butão de ôro. Fumo vê
armá o circo qui tinha girafa, lião, trigue, macaco e vimo os povo si
pindurando n´aquelas corda cum tárbuas in tempo de cairim” (eram os
trapezistas Mascotinha e Mascarenhas ensaiando para se apresentarem no
circo). Impregnada das emoções daquelas novidades, essas “cenas” me
pereceriam, hoje, ilustrações de um livro, do escritor Louis Carrol,
deixando-me penetrar, a cada instante, no reino encantado das maravilhas
de alguma Alice.
Eu tinha esse mundo em minha
cabeça e em meu coração. Vivia-o com intensidade, sempre distante dos
rigores de minha sábia mãe e dos olhares de Babá (Regina Dias).
Num desses dias de chuva
forte (o vale ficava carregado de nuvens choronas), elas chegaram como
presenças ensoloradas, sorrindo, pinotando, cantarolando e alegrando o
ambiente. Traziam, com orgulho ímpar, um cachinho de flores “fisgado”
dos jardins espalhados pelos caminhos. Bililiu, bem mais falante, fez
uma leve vênia e disse: “Florinha mode Luça infeitá seu artá” (um
oratório que mamãe colocara em meu quarto e de Iara, onde a imagem de
Nossa Senhora da Conceição se destacava). Depois, da mochila de pano que
sempre traziam com elas, foram tirando papel prateado (que revestia as
carteiras de cigarros). Esses papelotes eram colados uns nos outros
(cola artesanal, feita em casa). Ao secarem, davam um acabamento nas
bordas brancas, com anilina de cores variadas (da caixa de trabalho de
mamãe) e estavam prontos os colares. Dias depois, quando as chuvas saíam
de férias, ficávamos no calçadão da minha casa, sentadas em tamboretes
da cozinha para vendermos os colares. Elas imploravam: “Compre um colá
que é do Rio de Janeiro; esse roxim e esse azuzim custa um tustão, o de
prata é doistões. Cheque, se avexe, compre ó meno um...” No final da
tarde, os colares estavam amassados e desbotados e o humilde comércio,
logo falido!
Eram brincadeiras inocentes,
sem nenhuma malícia. Falando nisso, um dia fomos à casa de dona Amélia
Barroca, perto da linha do trem, do outro lado da nossa rua. Dona Amélia
vendia as mangas rosas mais belas e perfumadas, enfurnadas num baú de
madeira, com folhas de bananeiras. Logo na entrada viam-se vários pés de
malícia que Chiquinha e Bililiu cantavam: “Sai malícia, teu nome é
priguiça, vai drumi n´outo pasto qui aqui ocê num tem vez!” E dona
Amélia abria um sorriso largo e nos abraçava dizendo palavras carinhosas
e presenteando-nos suas lindas mangas. Que terna lembrança dessa boa
senhora!
Creio que Chiquinha e Bililiu
continuam brincando, em algum lugar, trepadas em mangueiras, goiabeiras,
assobiando como os passarinhos, olhando os circos e fazendo figurinhas
com massa crua de pão. Onde estarão? Como reencontrar esses “mitos” da
infância? Essas vozes que ouço em meus momentos de contemplação e de
poesia?
“Arre, Luça, tás pirigando pegá
catapora de nóis. Ramo vê cumo vai ficá se coçando, cum a cabeça duendo
e os óios pegando fogo cumo brasa. Mai tem que ficá na cama e tumá bain
cum fôia de sarsa isquentada, mode muxá as boinhas (bolhinhas)...”
(Bililiu)
“Eu num digo nadim e só vô alertá uma veiz, pra num dizerim qui sô
rim: o tá de Zeca qui mora pertim do cimitero anda vendo arma de tudo
que é gente. Ele viu arma inté do finado Suares qui morreu im Sum Paulo.
E cumo é qui uma aima doutro canto vem isbarrar pur essas banda?
Vumboro usá figa mode afastá essas arma. Tô inté tremendo cumo vara
verde e num duvidio qui esse cundenado vem pegá in n´eu hoje de noite!”
(Chiquinha).
Essas palavras ressoam
em meus ouvidos, até hoje, como sinfonias diletas.
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