Por José Casado
Entrou no ar a Rede Coca, grupo
de emissoras de rádio dos produtores bolivianos de folha de coca. Criada pelo
Estado, foi inaugurada na semana passada por Evo Morales, que há sete anos
acumula a Presidência da República com o comando da federação dos cocaleros.
A Bolívia, sob Morales, virou o
terceiro maior produtor mundial de coca e cocaína — a liderança é disputada
entre Peru e Colômbia. O país cultiva 27 mil hectares de folha e exporta para o
Brasil quase toda a produção de cocaína.
Hoje, em Nova York, o presidente
boliviano vai à ONU defender a legalização da coca. Morales é do tipo que se
supera cada vez que fala: “Sinto que a folha de coca vai enterrar o capitalismo”,
disse ao entregar a terceira emissora da Rede Coca, em Yungas, arredores de La
Paz.
É um caudilho à maneira de Manuel
Melgarejo, o ditador (entre 1864 e 1871) que se via como instrumento de Deus
“para realização de seus misteriosos desígnios, relacionados com o destino da
nobre porção da humanidade que povoa a Bolívia”.
Alcoólatra, Melgarejo considerava
Napoleão “superior a Bonaparte” e abria reuniões ministeriais com um grito:
“Silêncio, canalhas!” Numa crise financeira, ordenou a invasão do vizinho Peru
para “levantar fundos com empréstimos forçados”. Recuou depois da ressaca.
Sóbrio, Morales se vê como uma
espécie de missionário da coca. Acha mais importante “defender os direitos da
Mãe Terra que defender os direitos humanos”. Mantém uma visão peculiar sobre o
papel feminino na sociedade: “Quando vou às vilas, todas a mulheres ficam
grávidas e em suas barrigas escrevem: 'Evo Cumpre!'”
É candidato à reeleição, em
outubro, com apoio do governo Dilma Rousseff. Pouco afeita à política externa,
a presidente abraçou Morales e se meteu em um atoleiro político do qual não
consegue sair há 19 meses.
Numa tarde de segunda-feira, 28
de maio de 2012, o líder da oposição boliviana, que denunciava o crescimento do
poder do narcotráfico no governo Morales, entrou na embaixada em La Paz e pediu
abrigo. Dilma relevou os temores do Itamaraty, e deu instruções autorizando o
asilo, conforme a tradição e a boa prática política.
Não se sabe o motivo, mas em
seguida o governo resolveu deixar o senador Roger Pinto Molina trancado num
quarto improvisado da embaixada. Passaram-se 452 dias. Em junho de 2013,
cansado do silêncio sorridente de Brasília, o diplomata Eduardo Saboia achou
que o senador boliviano estava em perigo e o conduziu a Corumbá, em carro da
embaixada.
Dilma não gostou e trocou de
chanceler. Enviou Antonio Patriota a uma estadia paradisíaca na ONU, com
direito a mordomias como residência no Upper East Side, em Nova York, entre
Madonna e Woody Allen. Mandou para o limbo os diplomatas de escalão inferior (Eduardo
Saboia, Manuel Montenegro e Marcel Biato, ex-embaixador), deixando-os sem
funções e sob processos sigilosos — até hoje inconclusos.
Por fim, submeteu o senador
boliviano a um novo tipo de humilhação: o inferno burocrático administrado pelo
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Há quatro meses ele promete uma
decisão rápida sobre aquilo que a presidente decidiu 19 meses atrás: conceder
asilo a um político ameaçado por denunciar o avanço do narcotráfico no governo
Morales. Se e quando acontecer, talvez seja notícia na Rede Coca.
REDE COCA, por José Casado, O Globo
- 07.01.14
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